Home / Blog / (Re)criar mundos: uma viagem com PKD

*Por Lucas Waltenberg

“– Este mundo não me parece nada indistinto. – Miller bateu no braço da poltrona de couro ferozmente. – Este mundo é completamente real. É isso que está errado. Eu entrei para investigar os barulhos e não consigo sair. Meu Deus, será que vou ter que ficar vagueando nessa réplica pelo resto da minha vida?”
Conto Peça de Exposição, de Philip K. Dick, publicado originalmente em 1954
“Se você acha que este mundo é ruim, você deveria ver alguns dos outros.”
Título de uma palestra de Philip K. Dick, realizada 1977 na França[1].

Você já questionou a sua realidade? A realidade com “R” maiúsculo? Aquela que é feita de concreto, ar, sons familiares e de laços formados entre as pessoas? Já olhou para o lado e se perguntou: isso sempre foi assim? Tem algo errado aqui. Essa mesa está fora de lugar. Esse cheiro não existia antes. Quem são essas pessoas? Quando eu comecei a viver aqui? Estava sonhando? Estou sonhando agora?

Cena do filme Blade Runner

Quando leio Philip K. Dick me vem uma certa confusão, daquelas que se sente no corpo. Como se eu não devesse estar onde estou. Traço um itinerário retrospectivo. Não para descobrir para onde estou indo, mas para lembrar de onde vim. Como vim parar aqui. Passo a, paranoicamente, me perguntar se posso confiar no que está em volta. Se as paredes são realmente sólidas. Se o cômodo onde estou, que é familiar, foi construído ou só imaginado – e há diferença? –, se a pessoa do meu lado é humana ou não. Se sou humano ou não.

Calma. Eu (acho que) não perdi totalmente dimensão da realidade. Pelo menos, não ainda. Mas, sem entrar em um delírio obsessivo, que mal faz questionar se tudo o que conheço, da forma que conheço, existe de verdade ou não? E: como foi que as coisas chegaram a este ponto?

Já faz uns meses que comecei mergulhar em alguns livros e contos do Philip K. Dick, importante autor de ficção científica, que produziu incansavelmente da década de 1950 até sua morte no início dos anos 80. Sua influência se faz presente até hoje, não só por conta dos relançamentos de seus trabalhos, mas por meio das diversas adaptações de suas histórias[2].

Mergulhar, como metáfora, é uma palavra-chave aqui. É pular da borda do mundo que conhecemos e cair de cabeça em uma realidade que tem algo de familiar, mas é também explicitamente estranha, perigosa, opressora e caótica. Diversas vezes nessa imersão, terminei de ler um conto ou um livro dele com uma certa frustração. Não consegui me conectar com a história, seja porque não a entendi muito bem ou porque ela foi construída de tal forma que a minha imaginação e repertório não acompanharam. Acontece. Em outras vezes, as histórias ressoaram de forma muito particular. Como se eu compartilhasse experiências ou emoções com alguns desses personagens, que viveram antes do meu tempo ou que ganharão vida muitos anos depois que eu morrer.

Além dos personagens criados pelo autor, que são tão variados quanto complexos, me chama a atenção os ambientes e cenários onde suas histórias se passam[3].

Philip K. Dick não criava histórias. Ele construía mundos e universos, traço de sua produção que é mencionada pelo roteirista Jack Thorne no texto de abertura do conto O Passageiro Habitual na coletânea Sonhos Elétricos: “Como alguém que já leu muita ficção científica, acredito que exista uma diferença entre escritores que têm ideias e escritores que constroem mundos. PKD constrói universos”.

Qualquer ficção que nos convide a questionar a nossa realidade e as condições de vida que nos parecem inescapáveis são, no mínimo, bem-vindas. E tenho visto Philip K. Dick sobre essa lente. Pode ser que não entendamos muito bem o que está acontecendo ao nosso redor. O que tínhamos como verdade alguns anos atrás se mostra diferente hoje, contrariando nossas expectativas. As pessoas que achávamos que conhecíamos talvez tenham sido possuídas por entidades alienígenas. A nossa memória pode ser, na verdade, uma ficção implantada.

Philip K. Dick escreve histórias e constrói mundos e universos. E mundos bem construídos, de acordo com Jeff VanderMeer em Wonderbook, espelham e se diferenciam do nosso “mundo real”, simultaneamente. Os mundos inventados por PKD se distanciam muito do nosso. São estranhos, complexos, diferentes, difíceis de materializarmos (mesmo que seja materializar só na nossa imaginação). Porém, ainda que inventados, possuem certa similaridade com o que já conhecemos. Há algo suspeito em seus mundos. Como se não fossem realmente criados e imaginados, mas sim uma projeção distorcida, em maior ou menor grau, do que temos como “mundo real”.

Talvez Dick construa e destrua mundos ficcionais para que a gente possa pensar sobre a possibilidade de (re)construir o nosso, de reprojetá-lo. Em 1978, um discurso dele chamado Como construir um universo que não se desintegra dois dias depois[4] dá algumas pistas sobre isso.

É o meu trabalho criar universos como as bases de um romance após o outro. E eu tenho que construí-los de uma certa forma que eles não se desintegrem dois dias depois. Ou, pelo menos, é isso que meus editores esperam. Entretanto, vou revelar um segredo para você: gosto de construir universos que se desintegram. Gosto de vê-los se descolando e gosto de ver como os personagens nos romances lidam com este problema. Tenho um amor secreto pelo caos. […] A não ser que nós possamos psicologicamente acomodar a mudança, nós mesmos começamos a morrer, de dentro para fora. O que estou dizendo é que objetos, costumes, hábitos e formas de vida devem perecer para que o ser humano autêntico possa viver. E é o ser humano autêntico o que mais importa, o organismo viável, elástico que consegue se recuperar, absorver e lidar com o novo.

Como um autor de ficção científica, Dick usa a tecnologia e seus aparatos informáticos, virtuais, robóticos e extraterrestres para tecer comentários sobre a experiência humana, o que quer que isso signifique. Ainda que muitas de suas histórias tenham um tom futurista, o que importa não é a tecnologia ou a força desconhecida, que vem de outro planeta, mas o que ela faz com o humano e o que o humano faz com ela.

A personagem Sarah no quinto episódio da série Electric Dreams, baseado no conto Peça de exposição.

Não se trata também da ideia de autores de ficção científica “preverem” o futuro com a sua imaginação, mas de imaginarem um futuro que fala sobre o presente, que é inevitavelmente humano, para o bem ou para o mal. Afinal, como diz a professora e pesquisadora Adriana Amaral, em seu livro Visões Perigosas, sobre a produção e a subcultura ciberpunk, e que dá destaque à obra de PKD, “apesar de o futuro parecer ser a temática central da FC [ficção científica], na verdade, ele é uma metáfora do presente”. Não importa quão avançados estejamos na corrida tecnológica ou quantos planetas novos cataloguemos, continuamos humanos. Para o bem ou para o mal. Nossas angústias, medos, amores permanecem humanos. E tem algo nas histórias de Philip K. Dick que, por mais alienígenas, simuladas, virtuais ou impossíveis que sejam, continuam profundamente humanas.

Seus personagens paranoicos, confusos, fragmentados, que não são heróis nem vilões, traçam jornadas em busca de si nesses mundos inventados, onde suas identidades – e, por tabela, suas humanidades – são postas a prova. É o caso de Jason Taverner, em Fluam, Minhas Lágrimas, Disse o Policial e Bob Arctor, em O Homem Duplo. O primeiro sabe quem é e de onde vem; o resto do mundo é que parece não saber. Descobrir-se, aqui, passa não só por um labirinto interno, mas pela confirmação que vem do outro. Quando ninguém reconhece você, será que você ainda é alguém? Já o segundo se perde em si ao não conseguir distinguir mais quem é o Bob Arctor infiltrado em uma missão policial e quem é Fred, identidade criada por Bob Arctor para investigar o próprio Bob Arctor e seus amigos.

Quantos Bob Arctor será que existem? Mas que pensamento esquisito e fodido. Que eu me lembre, são dois, pensou ele. Um chamado Fred, que ficará assistindo ao outro, chamado Bob. A mesma pessoa. Será que é isso mesmo? Será que o Fred é a mesma pessoa que o Bob? Será que alguém sabe disso? Eu saberia se alguém soubesse, porque sou a única pessoa no mundo que sabe que Fred é Bob Arctor. Mas quem sou eu?, pensou ele. Qual deles sou eu?

Keanu Reeves no filme O homem duplo, interpretando o protagonista Bob Arctor.

As obras de Philip K. Dick tomam o familiar e o transformam em algo estranho. Pegam algo estranho e criam familiaridade para ele, incorporando-o ao nosso imaginário, à nossa forma de ver o mundo. Trazem o “e se?” como pergunta fundamental para investigar personagens, contextos, mundos e cenários.

E se o nosso mundo não for aquele que a gente acredita que seja, mas uma simulação da realidade? E se o nosso parceiro não for totalmente humano, mas um corpo ocupado por uma força alienígena, que, estranhamente, é justamente o que vai fazê-lo recuperar sua humanidade? E se as pessoas do nosso mundo forem tão conformadas com o arranjo social e político que um corpo enforcado em uma via pública não cause estranhamento em (quase) ninguém? E se o resultado da Segunda Guerra Mundial tivesse sido diferente?[5]

Só podemos controlar o fim fazendo uma escolha a cada passo. Só podemos ter esperança, ele pensou. E tentar. Em algum outro mundo, talvez seja diferente. Melhor. Existem claramente alternativas boas e ruins. Não essas obscuras justaposições, essas misturas, cujos componentes não conseguimos separar sem as ferramentas adequadas.

O homem do Castelo Alto

Philip K. Dick não era um herói. Longe disso. Pelo que tudo indica ele era tão – ou até mais – complexo quanto seus personagens. Também não parecia ser dos mais otimistas. Seus mundos são perturbadores e seus personagens vivem transtornados, para dizer o mínimo. Ainda que existam somente na ficção (será mesmo?), todos esses universos e seus elementos possuem traços muito reais, fazem algum tipo de comentário sobre a nossa forma de estar no mundo, de como construímos laços uns com os outros, de como buscamos um pouco de conforto e respostas frente ao caos e ao desconhecido.

Seus mundos e personagens, assim como nós, são cheios de dúvidas e respostas inconclusivas. Há muito “e se?” e pouco “é assim que as coisas são”. Com eles, nos instrumentalizamos para questionar a realidade em vez de afirmá-la. Suas histórias investigam a possibilidade da transformação, seja a transformação de si, do mundo ou da forma de enxergá-lo e viver nele.

E isso já me parece ser uma boa forma de olharmos para o lado e nos perguntarmos: isso sempre foi assim? Dá para mudar? Por onde começo?


[1] Neste link, você encontra a transcrição da palestra https://quantumbusinessman.com/4446-2/ e, aqui, a sua gravação https://www.youtube.com/watch?v=RkaQUZFbJjE, ambos acessados pela última vez em 16 de janeiro de 2021.

[2] Diversas obras suas foram adaptadas, principalmente, para cinema e televisão. Blade Runner – O Caçador de Andróides, filme de Ridley Scott lançado em 1982, ano de sua morte, é a primeira adaptação cinematográfica de um livro seu, intitulado Andróides Sonham Com Ovelhas Elétricas?, de 1968. O Vingador do Futuro (Total Recall, que possui duas adaptações, uma em 1990, dirigida por Paul Verhoeven, e outra em 2012, por Len Wiseman) e Minority Report – A Nova Lei (Minority Report, de 2002), filme de Steven Spielberg são adaptações dos contos Lembramos Para Você a Preço de Atacado e O Relatório Minoritário, de 1966 e 1956, respectivamente, ambos publicados na coletânea Realidades Adaptadas. O Homem Duplo (A Scanner Darkly, filme de 2006) é a adaptação cinematográfica feita por Richard Linklater do romance homônimo de 1977. A série antológica Philip K. Dick’s Electric Dreams, de 2017/18, traz dez episódios, cada um sendo uma adaptação de um conto seu, compilados no livro Sonhos Elétricos.

[3] Aqui me refiro às histórias que tive contato e ao que li e assisti. Algumas dessas histórias são citadas ao longo do texto. Sua produção é gigantesca e estou longe de ser um especialista em Philip K. Dick. Não tenho a pretensão de, neste texto, fazer uma análise de toda a sua obra.

[4] How to build a universe that doesn’t fall apart two days later foi publicado pela primeira vez em 1985, na coletânea I Hope I Shall Arrive Soon. O trecho traduzido aqui e, abaixo, em inglês, foi retirado desse site, acessado pela última vez em 16 de janeiro de 2021. Trago aqui uma tradução livre do trecho: “It is my job to create universes, as the basis of one novel after another. And I have to build them in such a way that they do not fall apart two days later. Or at least that is what my editors hope. However, I will reveal a secret to you: I like to build universes which do fall apart. I like to see them come unglued, and I like to see how the characters in the novels cope with this problem. I have a secret love of chaos. […] Unless we can psychologically accommodate change, we ourselves begin to die, inwardly. What I am saying is that objects, customs, habits, and ways of life must perish so that the authentic human being can live. And it is the authentic human being who matters most, the viable, elastic organism which can bounce back, absorb, and deal with the new.”

[5] Neste parágrafo, estou me referindo a três contos publicados na coletânea Sonhos Elétricos: Peça de Exposição, de 1954; Humano É, de 1955 e O Enforcado Desconhecido, de 1953. A última pergunta faz referência ao livro O Homem do Castelo Alto, de 1962, que deu origem à série The Man in The High Castle, de 2015.


* Lucas Waltenberg é professor, pesquisador e trabalha com estratégia de conteúdo e storytelling. É entusiasta de assuntos como tecnologia e comunicação, música e cultura pop e mantém uma conta no Medium, que ele jura que vai manter mais atualizada este ano.

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