Home / Blog / Primeiro como tragédia, depois como farsa: Snow Crash no século 21

*Por Lidia Zuin

Outrora compartilhado em conversas mais específicas sobre tecnologia e inovação, o termo “metaverso” se transformou verdadeiramente em uma buzzword depois que Mark Zuckerberg fez a transição do Facebook para Meta. 

Apesar de essa novidade ter ocorrido em um momento de crise, já faz um bom tempo que o empresário tem investido em tecnologias imersivas. Em 2014, a Oculus Rift foi adquirida pelo grupo e, desde então, Zuckerberg tem apostado na transição das redes sociais para ambientes imersivos em realidade virtual, aumentada e mista.

Todas essas informações se encaixariam perfeitamente no enredo de uma história cyberpunk. Talvez William Gibson usasse alguns floreios literários na ambientação, mas, no caso de Neal Stephenson, inventor da palavra “metaverso”, há um misto de crueza e deboche em sua ficção. É isso o que faz com que seu romance “Snow Crash” (1992) seja considerado tanto uma paródia quanto uma referência da literatura cyberpunk.

Neste livro, Stephenson antecipa a maneira caricata como o gênero se desenvolveu na cultura de massa e como essas ficções, que primeiro se deram como tragédia e alerta distópico, tornaram-se farsas mercadológicas. Não é algo tão surpreendente quando entendemos que muitas das maiores empresas de tecnologia atuais têm em seu cerne um gosto particular pela ficção científica.

Em um primeiro momento, o neologismo “ciberespaço” proposto por William Gibson passou a ser utilizado como termo técnico em referência ao ambiente digital. Hoje, é o neologismo “metaverso” que surge como uma versão “melhorada” do ciberespaço. Alguns autores fazem distinção entre os dois conceitos em níveis de imersão e desenvolvimento tecnológico, mas tanto Gibson quanto Stephenson estavam imaginando algo parecido: a criação de um universo acessível a partir de headsets de realidade virtual, dispositivos hápticos e implantes diretamente conectados em nosso sistema nervoso.

No caso da Oculus Rift, é de conhecimento geral que o fundador Palmer Luckey presenteava os funcionários com o livro “Ready Player One” como uma forma de inspirá-los a criar algo semelhante ao OASIS, o ciberespaço/metaverso de Ernest Cline. Só que, assim como “Snow Crash” e “Neuromancer”, também “Ready Player One” é uma “cautionary tale”, isto é, uma história que quer nos ensinar uma lição: por mais incrível que OASIS pareça ser, há muitas controvérsias e desafios que precisam ser enfrentados.

Curiosamente (ou não), Stephenson entrou no mercado de desenvolvimento de tecnologias imersivas como consultor. No caso, ele atua desde 2014 como futurista da Magic Leap, uma empresa que viralizou à época com um vídeo de demonstração de uma tecnologia que nunca chegou a existir de verdade. Em 2017, um site britânico chegou a acusar a empresa de “vaporware”, isto é, de ser criadora de uma tecnologia que está demorando demais para ser desenvolvida ou que talvez nunca venha a existir.

No caso do metaverso, Stephenson parece estar apreciando a proporção que sua ideia está tomando – tanto do ponto de vista tecnológico quanto sociológico. O que ocorre, porém, é que enquanto o metaverso promete ser uma nova era para as redes sociais, ele também é extremamente promissor para outros segmentos mais especulativos, como o setor imobiliário e de criptomoedas.

Em “Snow Crash”, Stephenson já havia proposto o Global Multimedia Protocol Group como uma entidade corporativa fictícia que administra as propriedades imobiliárias virtuais. Hoje, de fato, há investidores pagando milhões de dólares em terrenos virtuais, ou melhor, terrenos especificamente situados no Metaverso. Algumas dessas compras podem ser autenticadas através do famigerado NFT ou non-fungible tokens, que são basicamente contratos baseados em blockchain e que oferecem uma documentação de propriedade de um objeto virtual.

Curiosamente (ou não, se considerado seu livro “Cryptonomicon”), Stephenson também embarcou no mercado de criptomoedas recentemente ao estabelecer uma parceria com Peter Vassenes para criar sua própria blockchain focada no metaverso, a Lamina1. Isso tudo em meio a um “inverno das criptomoedas” no qual o primeiro NFT de um tweet foi adquirido por 3 milhões de dólares e  Elon Musk está sendo processado em 258 bilhões de dólares devido a um suposto esquema de pirâmide ao apoiar a criptomoeda Dogecoin. 

Recentemente, o também escritor de ficção científica cyberpunk Bruce Sterling publicou um polêmico tweet no qual dizia que Satoshi Nakamoto, o desconhecido criador do Bitcoin, seria um dos maiores anônimos que já causaram mal à humanidade. Também foi Sterling quem inaugurou o cyberpunk nos anos 1980 com a fanzine “Cheap Truth” e a coletânea “Mirrorshades” para depois “matar” o gênero em um artigo publicado no começo dos anos 1990.

Apesar de todas as controvérsias do “mundo real”, “Snow Crash” mantém sua importância e relevância enquanto um romance que parece agir como aquele meme de uma celebridade rindo e séria ao mesmo tempo. Porque do mesmo jeito que Stephenson mostra preocupação com o que Zuckerberg possa vir a fazer com o Meta, ele também está jogando o mesmo jogo ao fazer parte desse ecossistema corporativo. 

Ler seu livro e acompanhar sua movimentação no “mundo real” pode se provar algo interessante àqueles que querem ter sua chance de incorporar sua própria versão de Hiro Protagonista no metaverso. Por enquanto, parece que vamos ter que continuar andando de skate para entregar pizzas e pagar os NFTs de skins de grife no metaverso.


*Lidia Zuin é jornalista, mestre em semiótica e doutora em artes visuais pela Unicamp. Autora do romance de ficção científica REQU13M, assina colunas nos sites UOL e O Futuro das Coisas. Possui dois TEDxTalks e artigos publicados no Brasil e internacionalmente.

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