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*Por Nathalia de Morais

Esse texto faz parte da série #DesvendandoDuna, em parceria com o site Delirium Nerd.

A primeira imagem que o nome da obra causa é a de um grande e infinito deserto. E quando estamos falando do planeta Duna, não é propriamente um pensamento errado. Todos os personagens que chegam em Arrakis, o deserto de Duna, são submetidos a uma aridez extrema. Não apenas o calor castiga seus moradores, porém o perigo maior reside na falta de umidade e escassez de água. Durante toda a saga veremos que o “povo do deserto”, os fremen, atribuem a ela um sentido quase divino. Os fremen, portanto, podem ser lidos como tribos livres de Arrakis, piratas da areia, ou remanescentes dos Peregrinos Zen-sunitas. 

O fremenStilgar, personagem de Javier Bardem na nova adaptação do livro.

A água como o sagrado em Duna

Sobre a água, seu desperdício é um sacrilégio e sua oferta, uma honra. Mesmo na hora da morte, separam ossos, carne e água. A água deve ser reaproveitada em qualquer instância – e caso tal corpo tenha sido de alguém derrotado em combate, cabe ao vencedor o direito sob a água ao que pereceu. Na obra de Frank Herbert, “a vida está à serviço de todas as outras formas de vida” (trecho encontrado nos apêndices de Duna). Contudo, evoluindo o pensamento para o presente, existia ali uma preocupação ecológica que reverbera com nossa modernidade. 

A falta de água e as severas mudanças climáticas vão constituir uma injeção de realidade ao leitor, pois perceberá o custo que lhe acarretará a falta de cuidado com o nosso meio ambiente. A inospitalidade da Terra é uma preocupação real, descrita na lírica de Duna com dados precisos, além de uma preocupação científica em explicar o ambiente onde eles vivem. Para a sobrevivência daqueles bravos navegadores do deserto existe até mesmo um traje especificamente projetado: os trajestiladores. São como destiladores que reaproveitam a água do próprio corpo. Aparelhos que são usados nas narinas e que acabam marcando o nariz de quem vive muito tempo no deserto. 

Arrakis, terra desértica de muitos mistérios 

O gigantesco verme de areia.

Em Arrakis, a grande questão não é a falta de água, mas a umidade. Esta sendo o primeiro e mais perigoso dos inimigos. Ela castiga os andarilhos e impede que o povo das dunas tenham animais de estimação, apenas alguns raros bichos para criação. Contudo, um cientista pioneiro naquela terra descobriu que existia água no deserto. A prova maior são as grandes calotas de sal, indicando bolsões de água. E as dificuldades não acabam por aí: dentro dos bolsões existem vermes. Pelo deserto, existem vermes. E eles são grande parte da mitologia de Frank Herbert. 

O diâmetro deles varia, mas existem alguns que apenas os “Deuses” poderiam ser responsáveis pela criação. Para evitar um desses vermes e ter sua vida ceifada, é necessária toda uma preparação que apenas os fremen estão acostumados. Como lidar com os vermes e toda a dificuldade encontrada após sair de Caladan é algo que o leitor descobre conforme embarca na obra densa, rica e viciante de Duna. 

Prosperidade e Ecologia no Deserto

Timothée Chalamet como Paul, na adaptação de Dennis Villeneuve.

É Paul, Muad’dib, quem traz prosperidade e aprende os ensinamentos do primeiro cientista da planetologia em Arrakis. A discussão semeada em Duna reflete os problemas que a Terra enfrenta hoje em dia. Uma das missões em Duna é repassar a ecologia adiante, criar uma linguagem inédita, manipular o clima, as estações, além de manter a ordem ecológica. Neste lugar são os fremen, o povo desértico, os responsáveis pelos maiores cuidados com a natureza. 

Eles repassam seus ensinamentos nos sietch (refúgios, esconderijos fremen usualmente em cavernas). E com esse movimento conseguem elementos para acelerar o ecossistema do deserto. Os Atreides compartilham o pensamento fremen, ou seja, querem utilizar o poder transformador ao invés de subjugar. 

Toda uma recriação, criação e mutação ecológica pode ser lida na obra de Frank Herbert. Elementos como alfafa, ambrósia e incenso também pertencem ao universo da ficção científica. Contudo, o ecossistema não se sustenta apenas com a vegetação: animais também podem ser encontrados no universo de Duna, espécies híbridas que sobrevivem ao ambiente inóspito de Duna, dentre outras espécies que se adequam ao seu território.

Paralelos com o presente 

Existe uma fala de um grande planetólogo em Duna que deveria ressoar em nosso mundo:

“O que o analfabeto em ecologia não percebe em relação a um ecossistema, é que se trata de um sistema. Um sistema! Um sistema mantém certa estabilidade fluida que pode ser destruída por um deslize em apenas um nicho. Um sistema tem ordem, uma correnteza que flui de um ponto a outro. Se algo represar a correnteza, a ordem desmorona. Os inexperientes talvez só percebam esse desmoronamento quando já for tarde demais. É por isso que a função mais elevada da ecologia é a compreensão das consequências.” 

Uma escritora que se preocupou com a sistemática ecológica e a derrocada da falta de atenção ao mundo que nos cerca é Margaret Atwood em sua trilogia Maddaddão. Uma herança de Herbert? Talvez. O livro dela igualmente aborda um sistema linear cronológico, onde as mudanças no ecossistema, experimentos e exploração incessante acabam provocando danos irreversíveis para a Terra. Mas é um alívio perceber que existe uma  preocupação de escritoras e escritores em transmitir mensagens de equilíbrio para o planeta antes de alguma catástrofe climática e no reino animal acontecer. 

O livro Maddaddão, publicado no Brasil pela editora Rocco.

Salvar o Planeta é uma das missões mais importantes no ativismo mundo afora, demonstrando que mesmo cinquenta anos atrás Herbert já tinha conhecimento de que os recursos são escassos. No entanto, estamos diante de uma obra de ficção científica, o homem, no passo que segue, não terá a oportunidade de transferir sua existência para outros planetas. 

A especiaria como retrato global contemporâneo

Esse enfoque ecológico na obra literária paralela com a urgência do presente. O que será do ser humano quando a escassez de água transformar todos nós em fremens? 

A sobrevivência é o principal motivador dessa população guerreira, que respeita suas mulheres, mantém tradições religiosas e é vista como selvagem por pessoas de fora. Mas, tente crescer no deserto, sem umidade, sem conhecer a chuva, com milhares de vermes abaixo dos seus pés. E ainda ser responsável pela guarda da maior especiaria do Império: o mélange, uma droga alucinógena que ajuda em visões, combustíveis, habilidades geriátricas, dentre outros, que serão desvendados ao longo da saga. 

Essa especiaria, aliás, atrai muitos interessados para Arrakis. E tal curiosidade quase nunca é versada de boas intenções. A submissão dos fremen parece ser, na opinião de muitos, o único modo de controlar a substância. Exatamente como a submissão de diversas culturas e países ricas em espécies raras nos seus locais de origem. 

O mélange, esse quase personagem que é uma ponte com o mundo atual, é originário de Arrakis e onde deve sobreviver. Ela detém substâncias geriátricas e provoca dependência razoável em pequenas doses ou graves quando usada diariamente. Até mesmo Muad’Dib chega a acreditar que suas visões dependem da substância e sofre quando separado dela. 

A especiaria no filme de 1984, de David Lynch.

Por que o mélange é um paralelo com a atualidade? Pois ele é, em linhas gerais, uma fonte de combustível. Um elemento escasso num lugar de cultura diferente daqueles que desejam dominá-la, cujos benefícios trazem consigo também diversos problemas. A guerra, o vício, os conflitos locais, tudo gira ao redor do mélange; ou, paralelamente, do nosso petróleo. 

Nossas naturezas locais são usadas constantemente por sistemas exploradores, com pretextos muitas vezes parecidos com os que são colocados na própria obra, “os fremen não são capazes de preservar o mélange”. Quantas guerras foram causadas usando o mesmo pretexto? O próprio sistema colonialista é baseado em “sistemas superiores”, agindo como se culturas desconhecidas fossem bárbaras. A Guilda Espacial, segmento a serviço do Império, que precisa da especiaria, seria um desses governos que invadem territórios alheios para explorar a natureza que não lhes pertence. 

É a condição de explorar o que não é de seu território, mas que sua sociedade precisa. Onde substituem diálogo e manutenção de acordos por exploração contínua de um povo à margem do poder institucional. O mélange, em Duna, está no epicentro, é o combustível que propulsiona toda uma rede de interesse interplanetário. Se o leitor está em busca de parâmetros: basta observar como o mundo está sempre de olho na Amazônia, por sua abundância e exclusividade em riquezas naturais escassas fora de nosso território.

Duna tem muito para ensinar sobre preservação ambiental e cuidados com o ecossistema, além de ser um grande presente aos leitores que amam universos detalhados. Bom, eles podem se deleitar perante uma refinada construção não apenas de ecossistema, mas de manutenção, especiarias e a riqueza ecológica que Frank Herbert implantou em sua obra épica. Que deveria, porventura, ser uma leitura obrigatória aos interessados em temas da natureza e em como ela pode se transformar pela ação nociva do homem.


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* Nathalia de Morais é produtora de conteúdo, editora no Delirium Nerd, apaixonada por narrativas de ficção e mundos fantásticos. Dorme com um livro na cabeceira, e ama analisar obras da cultura pop através das mais variadas perspectivas.

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