Home / Blog / Do quase-super-homem ao homem-quase-macaco

*Por Sérgio Rizzo

Distopia, aqui nos tem de regresso. À luz (ou às sombras) da caixa obscurantista de horrores aberta por ocasião das eleições presidenciais de 2018 no Brasil, as perguntas que ecoam na cabeça do espectador ao final de O planeta dos macacos (1968) ganham incômoda atualidade. O que saiu de errado com a humanidade? Em que momento da história a irresponsabilidade, a inconsequência e o embrutecimento atingiram um ponto sem retorno? Como as lideranças políticas e econômicas nos conduziram de volta a um estágio pré-histórico?

Publicado em 1963, o romance homônimo do francês Pierre Boulle (1912–1994) — autor também do livro que deu origem ao clássico A Ponte do Rio Kwai (1957), de David Lean — não propõe nenhuma explicação para o que teria acontecido ao longo de séculos, na Terra, para que o ser humano trafegasse na contramão da Avenida Darwin. Seu duplo carpado final — que tem mais parentesco com a versão de 2001, dirigida por Tim Burton, com roteiro de William Broyles Jr., Lawrence Konner e Mark Rosenthal — nocauteia o leitor.

O filme de 1968 — produzido por Arthur P. Jacobs (que comprou os direitos do livro antes mesmo de sua publicação), dirigido por Franklin J. Schaffner e roteirizado por Rod Serling (o criador do seriado Além da Imaginação), com polimento de Michael Wilson (A Ponte do Rio KwaiLawrence da Arábia) — pariu sua própria maneira de concluir a provocação distópica de Boulle. Recorre a uma ideia igualmente perturbadora, traduzida pela imagem icônica da Estátua da Liberdade, mas também não oferece explicações.

O romance homônimo do francês Pierre Boulle não propõe nenhuma explicação para o que teria acontecido ao longo de séculos, na Terra, para que o ser humano trafegasse na contramão da Avenida Darwin. (Imagem: Divulgação)

O final em aberto, com múltiplas elipses a serem resolvidas pelo espectador, é um dos raros elementos que aproximam O planeta dos macacos de 2001: Uma odisseia no espaço, outro clássico de ficção científica. Lançado também em 1968, 2001 foi produzido e dirigido por Stanley Kubrick a partir de uma ideia desenvolvida por ele em parceria estreita com o escritor Arthur C. Clarke. Incrivelmente, os dois filmes chegaram ao circuito dos Estados Unidos na mesma semana, no início de abril, travando embate, que persiste ainda hoje, entre duas visões contrastantes do futuro.

Do homem-macaco ao homem, e depois ao super-homem: ao pavimentar essa trilha linear, alimentada por violência, o cético Kubrick cedeu ao otimista Clarke na antevisão do século 21– e, já sabemos agora, ambos estavam muito errados (e, sim, o filme é estupendo). Agradeçamos, por outro lado, ao cinismo de todos os envolvidos em O planeta dos macacos por transportar a ironia desconcertante de Boulle para uma ficção científica em que se percorre outra estrada: a que vai do quase-super-homem ao homem-quase-macaco.

Agradeçamos ao cinismo de todos os envolvidos em O planeta dos macacos por transportar a ironia desconcertante de Boulle para uma ficção científica em que se percorre outra estrada: a que vai do quase-super-homem ao homem-quase-macaco. (Imagem: Divulgação)

Não temos ainda como checar se esse olhar especulativo foi mais acertado, porque o futuro em questão ainda está muito distante. Quando Taylor (Charlton Heston) e seus colegas pousam no que parece ser “um planeta em órbita de uma estrela da constelação de Órion”, estamos em 25 de novembro de 3978, mais de dois mil anos depois de a espaçonave ter sido lançada, em 14 de julho de 1972. Para a tripulação, foram apenas 18 meses de viagem. Um pequeno salto para aqueles homens, um gigantesco passo para a humanidade — mas para trás.

Basta dar uma olhada no atual estado de coisas para constatar que a perspectiva de Boulle tem mais a ver com o futuro que hoje imaginamos do que a de Kubrick e Clarke. Há, é bem verdade, uma grande inocência na especulação distópica de O planeta dos macacos: os macacos falam inglês coloquial da década de 1960 e, assim, se resolve o problema da comunicação entre espécies. Boulle foi mais cuidadoso. O Taylor do livro, cidadão francês, precisa aprender a língua dos macacos para entender melhor sua cultura e conversar com eles de igual para igual.

Para a tripulação, foram apenas 18 meses de viagem. Um pequeno salto para aqueles homens, um gigantesco passo para a humanidade — mas para trás. (Imagem: Divulgação)

Descontado esse jeitinho de linguagem em que Hollywood sempre foi especialista, as opções de cenografia, figurinos, direção de fotografia e música, entre outros aspectos de O planeta dos macacos, ajudam a compor uma ambientação desoladora que, por sua vez, configura outra liberdade, desta vez mais radical e funcional, em relação ao romance. A civilização símia imaginada por Boulle encontra-se em um estágio de cultura e tecnologia que lembra a humanidade nos anos 1950; os macacos do livro usam aviões, por exemplo.

Concebe-se dessa forma, no filme, o invólucro estético para uma sociedade, a dos macacos, em que a ciência é refém da religião, em que o conhecimento de ponta é ocultado da população pelos dirigentes com o objetivo de perpetuar dogmas (e com eles o controle sobre corpo e mente dos cidadãos), em que existem castas (orangotangos, gorilas, chimpanzés), em que tudo se resolve, em última instância, na base da reza, da força e da bala. Com quem eles aprenderam isso tudo? Taylor sacou a resposta.

Concebe-se dessa forma, no filme, o invólucro estético para uma sociedade, a dos macacos, em que a ciência é refém da religião, em que o conhecimento de ponta é ocultado da população pelos dirigentes com o objetivo de perpetuar dogmas… (Imagem: Divulgação)

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*Sérgio Rizzo é jornalista, professor, crítico e curador de cinema. Escreve para O Globo e dá aulas na FAAP, no Colégio Augusto Laranja, no Espaço Itaú de Cinema, na Academia Internacional de Cinema e em unidades do Sesc.

**O texto acima faz parte do primeiro fascículo da mostra Fronteiras Finais, ciclo de cinema organizado pela AlephProjeto Replicante e CineSesc, que celebra a chegada do homem à Lua e faz uma contagem regressiva para o aniversário de 50 anos do feito. Para informações sobre a segunda fase da mostra clique aqui.

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